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No tempo dos folhetins

28/06/2012 / Julio Silveira

Nas séries digitais, fãs de ficção fazem sucesso real
 
Em um episódio da série “Twilight Zone”, o mundo é devastado e o único sobrevivente é um bibliófilo, que corre até as ruínas da biblioteca pública e prepara-se para passar o resto de sua vida lendo. “Tempo! O melhor de tudo é que agora tenho tempo!”, diz para si mesmo o último homem sobre a terra, “finalmente tenho tempo suficiente para ler!”. Se não fosse por seu irônico fim (que não contarei aqui), sentiria certa inveja do protagonista. Quem não gostaria de ter mais tempo de ler, ou não se sente culpado por aquela pilha de livros comprados e não lidos?
 
A internet veio complicar a situação, ao simplificar ao máximo o acesso aos livros: em e-books, eles podem vir aos borbotões, em segundos, por centavos. O digital não pode nos dar mais tempo para lê-los (na verdade, ele estimula a produção de mais e mais livros para disputar nossa atenção), porém algumas soluções baseadas na publicação digital e na fragmentação das histórias podem nos dar uma vida literária satisfatória e até nos permitir, em meio ao corre-corre, ler livros grossos (que podem até salvar sua vida, se tiverem a espessura adequada).
 
Há quem ataque o problema “tempo e leitura” empregando a lei da oferta e da demanda — de minutos. O aplicativo Delay, da editora holandesa Querido, propõe um conto que dura justamente o tempo que você tem na sala de espera do dentista, ou enquanto espera a condução. Claro que isso funciona melhor na Holanda, onde bondes passam nos horários determinados, do que no Brasil, onde nunca se sabe se o ônibus “está atrasado ou já passou”.
 
Quero crer que leitura pós-papel não será mais medida em minutos ou em páginas lidas. Novos hábitos de leitura — desviantes, derivados e comunitários — estão surgindo com as novas formas de publicação digital. O fim da materialidade acabou com barreiras entre a distribuição, a leitura e a escrita; os papéis do leitor, do editor e do escritor não são mais estanques, são intercambiáveis. Um exemplo é o folhetim digital, onde histórias intermináveis (literal e literariamente) são consumidas em pequenas doses semanais por milhares de pessoas, que são, ao mesmo tempo, autores e leitores.
 
As “Fanfictions” são folhetins cooperativos, em que uma comunidade de admiradores de certa obra de ficção “estende” os roteiros e personagens originais em novos capítulos e tramas — escritos, revistos e comentados pelos próprios membros. Muita bobagem é escrita, porém, quando a quantidade de textos e leitores alcança uma “massa crítica”, o fenômeno do crowd wisdom acaba por separar o joio do trigo — e pode antever o que fará (muito) sucesso na versão impressa.
 
O atual megabest-seller mundial, Cinquenta tons de cinza, de E. L. James, foi originalmente uma fanfiction — uma versão erótica da série Crepúsculo, que uma leitora da série (talvez insatisfeita com os pruridos mormônicos de Stephane Meyer) começou a publicar em gotas na internet (mais ou menos desse jeito). Em seguida, a história evoluiu para um enredo totalmente diverso. Com o sucesso levantado na rede, foi o primeiro caso em que um autor estreante fez um acordo milionário com uma editora, sem passar pelo caminho tradicional dos agentes.
 
Os membros das comunidades de fanfiction foram pioneiros em se livrar de conceitos intrínsecos aos livros impressos — como “autoria” e “propriedade intelectual” ou ainda “distribuição” e “obra definitiva”. No fórum da fanfiction, a narrativa (personagens, tramas) é de todos, e está sempre mudando. Como em toda ruptura, podemos encarar essa anarquia como o fim do livro ou podemos vislumbrar como será o livro daqui por diante. Se a venda de exemplares não parece ir muito longe como negócio, modelos de assinatura podem prosperar, por exemplo. Um editor mais competente pode encontrar nos folhetins online uma forma de vender narrativas (e não vender apenas exemplares). Na opinião da a Editora Ana von Veh, da Saybooks,
 
no mercado editorial de hoje, já não podemos depender da venda de produtos individuais que podem ou não ter sucesso. A Fanfiction sugere outro caminho: um modelo baseado na web, baseado nas ideias e ideais de uma comunidade, que encoraja leitores a interagir com autores, editores.
 
O editor que desbravar esse “outro” caminho não estará reinventando a roda: livros publicados periodicamente em pedaços, onde a narrativa era escrita na medida da reação do público — eram a regra até pouco tempo. Foi por meio dos folhetins que o cânone literário ocidental — Dickens, Victor Hugo, Tolstoi — foi compilado. A série Cinquenta tons de cinza, deixando de lado a questão “qualidade literária”, tem muito em comum com as obras desses autores: uma extrema popularidade e um imenso volume de texto. Quem diria que, em uma época em que mal temos tempo para ler, o livro mais lido teria 1.650 páginas (a trilogia, em inglês)? Sinal dos tempos.
 
PS: Resolvi arriscar um passo fora da teoria e tirei um texto da gaveta digital para estrear meu folhetim hoje. Prometo, a quem interessar possa, entregar um capítulo semanal quinzenal. Quem se dispuser a acompanhar a história seriada de Mo’ Desmond, o contraponto de Deus, será também autor, e editor, desse livro. 
 
  

 

Fonte: PublishNews